Esta é a primeira coluna de uma série na qual pretendo apresentar percepções sobre as transformações da indústria da música hoje em dia. Apesar de estar feliz em ser um pesquisador da indústria da música, não me agrada ficar preso na torre de marfim da academia. Sempre gostei de ouvir pessoas do mercado e da política falando de suas experiências, vidas pessoais, visões de mundo. Aprendi muito com isso. Agora, quero dar um retorno, discutindo questões prementes desde uma perspectiva que pode se dar ao luxo de evitar o imediatismo que o mundo dos negócios exige.

Para começar com o pé direito, decidi colocar o dedo naquela que é a grande ferida aberta da indústria da música hoje: o imbróglio sobre a diferença de valor (value gap) do YouTube. Sim, você está correto: gosto de polêmicas! Espero poder contribuir para esclarecer o que está em jogo nessa disputa.

Olhando de fora dessa guerra de palavras entre YouTube e tradicionais agentes da indústria da música, uma das coisas que me preocupa é o tom moralista que a discussão acabou tomando. De um lado do ringue, os agentes da indústria da música (compositores, editoras e gravadoras) sugerem que há má fé por parte da plataforma de vídeos em relação ao pagamento de royalties pelas obras utilizadas. Ao compararem os números de views e a grana paga pelos royalties das obras utilizadas, surge certa indignação. Ao observarem os lucros do Google (cuja receita alcançou $89,46 bilhões de dólares em 2016, tendo como um dos principais serviços o YouTube), tais agentes irritam-se com a ganância empresa!

Do outro lado, o Google insiste em afirmar que essa acusação desconsidera seu papel de “salvador” da indústria da música, já que a plataforma consegue gerar algum valor monetário para conteúdos que, de outra forma, estariam disponíveis de maneira ilegal (pirataria) na internet. Para reforçar sua probidade, a empresa acabou de publicar um relatório feito por uma empresa independente, no qual se afirma que (a) cerca de 85% do tempo gasto do conteúdo disponível em sua plataforma estaria deslocado para canais de valor inferior ou similar (pirataria) e que (b) a empresa pagou mais de US $ 1 bilhão para a indústria da música apenas com publicidade, no período de 12 meses até dezembro de 2016[1]. O resultado desse nobre esforço de esclarecimento talvez não tenha sido, digamos, muito feliz: os agentes da indústria da música ficaram revoltados, desqualificando o relatório encomendado pela empresa.

Apesar de entender as posições de ambos os lados – e entender que ambos os lados possuem sua parcela de razão – acho que manter a discussão nesse nível não permite entrever o que há de mais importante nessa disputa: que o YouTube pode estar apontando o futuro da indústria da música no século XXI. Não estou dizendo que essa empresa esteja correta em como opera. Afirmo que a ela criou uma tecnologia capaz de gerar dinheiro a partir dos complexos usos dos conteúdos digitais: é o que vou chamar, aqui, de economia dos algoritmos.

Para entender o que quero dizer com isso, é preciso considerar o modelo de negócio do YouTube. De longe, a empresa se apresenta como uma plataforma totalmente diferenciada em relação aos outros serviços de streaming. Afinal, é uma empresa em si, mas também fornece infraestrutura para outras as redes multicanais. Seu funcionamento depende em conteúdos providos por usuários, o que faz com que transite na fronteira entre o amadorismo e a produção profissional, e o diferencia legalmente das plataformas fechadas que trabalham com conteúdo proprietário. O âmago de seu negócio é oferecer acesso grátis aos conteúdos que hospeda. O conceito de visualização (view) de um vídeo também é singular: um usuário pode ver um vídeo, mas também pode ver uma sequência de vídeos, podendo intervir na visualização, parando a reprodução ou mudando de vídeo, eliminando diferentes tipos de publicidade. Então, como se gera valor para seus vídeos?

A resposta para essa pergunta não é fácil. Nem os próprios produtores de conteúdo para o YouTube (ou youtubers) não sabem ao certo “como” se ganha dinheiro com seu material! É verdade que há diversos tutoriais que explicam, de maneira prática, como monetizar vídeos na plataforma, mas sempre se sublinha que a quantia de dinheiro varia muito, dependendo de “uma série de fatores”.

De acordo com os textos explicativos do próprio YouTube, tais fatores são: o tempo de visualização do vídeo, duração média de visualização, porcentagem visualizada média, retenção de público, o tipo de publicidade que é exposta, relação entre “curtidas” e “não-curtidas” (likes/dislikes), a quantia de dinheiro pago pelo anunciante em determinada época do ano, a região geográfica do usuário, entre outros… mas o que devo entender como esse fator tão insólito que é a “retenção de público”? A empresa me explica: ele deriva (a) da duração média da visualização para todos os vídeos em seu canal, (b) dos principais vídeos ou canais listados por tempo de exibição, (c) dos dados de retenção de público de um vídeo específico em diferentes períodos, (d) da retenção relativa do público de um vídeo em comparação à média do YouTube para “vídeos semelhantes”. Se não me engano, essa definição implica dizer que o conceito de visualização conforme utilizado na radiodifusão foi para o espaço; no ambiente digital, visualização é o resultado da reunião de um conjunto complexo e diferenciado de fatores relacionados. Talvez seja por isso que a ideia de comparar o número de visualizações com o dinheiro pago pelo YouTube seja um erro ingênuo por parte dos que reclamam da diferença de valor! Mesmo assim, continua a dúvida: como a contagem do dinheiro é feita?

Aqui entra o elemento mais inovador do modelo de negócio do YouTube. Mais do que outras plataformas de streaming, o YouTube desenvolveu uma verdadeira economia de algoritmos! É essa Inteligência Artificial que computa cada tipo de uso dos vídeos, calculando a quantidade de dinheiro a ser paga para os titulares de direitos autorais das obras.

Por que eu acho que isso que chamo de economia de algoritmo aponta o futuro da indústria da música? Por vários motivos, mas destaco três agora. Um é que me parece que o modelo de negócio dos serviços fechados de streaming de música ainda tem desafios a superarem para se sustentarem ao longo do tempo – algo que pretendo desenvolver em outra coluna. Outro é que os algoritmos apresentam uma tecnologia perfeita para se dar conta dos usos complexos, pois fragmentários, dos conteúdos digitais. Só essa IA é capaz de reunir dados diversos, em larga escala, espalhados pela internet e fazer cálculos que convertam tais usos em quantias monetárias. O problema fundamental disso é que as fórmulas dos algoritmos de empresas como o Google não são reveladas ao público: são segredos de indústria. É justamente nessa opacidade das regras de ação dos algoritmos que reside a discordância da diferença de valor – é verdade que, talvez, a tecnologia blockchain possa resolver isso, mas essa discussão também fica para outro momento.

Por tais razões é que considero a discussão sobre a diferença do valor do YouTube baseada em pilares fundamentalmente equivocada. Claro, sei que atrás desse véu do “justo pagamento” aos produtores de conteúdo, há uma enormidade de interesses constituídos, em ambos os lados, que visam objetivos maiores. Mas se quisermos realmente garantir uma remuneração adequada aos produtores de conteúdos digitais, o que devemos perguntar é: já que o YouTube apresenta uma tecnologia para a monetização de formas complexas de usos de conteúdos digitais, como fazer disso um negócio mais claro e lucrativo para todos os que dele participam? Isso passa por novas formas de regulação das plataformas digitais, transparência das transações econômicas, acordos sobre taxações das empresas digitais e da IA. Temas de difícil trato, os quais merecem discussões mais detidas em si. Mas do que tenho certeza é que querer forçar o YouTube a ser um jardim murado, como as plataformas fechadas de streaming, é seguir por um caminho inseguro, na medida em que o fará compartilhar uma série de incertezas sobre a viabilidade inerentes a esse tipo de negócio – basta ver o fracasso que tem sido a experiência do YouTube Red.

Ah sim, não me esqueci que mencionei, acima, que tenho três razões pelas quais considero o YouTube um marco para a indústria da música no século XXI. A terceira razão é o Content ID. Mas esse dispositivo é tão complexo que merece uma reflexão para próxima coluna.

[1] O relatório Value of YouTube to the Music Industry foi publicado pela empresa RBB Economics, publicado em maio de 2017.

 

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