Destaque: O Content ID apareceu como um dispositivo sofisticado para manter o caráter aberto e democrático do YouTube e, ao mesmo tempo, gerar retorno financeiro para os titulares de direitos autorais das obras utilizadas. Mas ele também representa um enorme perigo para a indústria fonográfica, assim como para a produção amadora de conteúdos musicais. O que aconteceria se o YouTube se tornasse o grande responsável por zelar pela aplicação da lei de direitos autorais em sua própria plataforma?

Na coluna anterior, defendi que o YouTube deveria ser observado com mais cuidado por ser uma experiência de ponta na reconstrução da indústria da música no século XXI. Entre os aspectos que havia destacado, estava um dispositivo que tem recebido pouca atenção tanto dos agentes do mercado quanto dos pesquisadores da indústria da música: o Content ID. Minha impressão é que essa inteligência artificial (IA) apresenta uma contribuição instigante para a indústria da música por ser plena de potencialidade, assim como de perigos.

O Content ID é uma IA que monitora os usos de conteúdos protegidos por direitos autorais e conexos em vídeos publicados por terceiros no YouTube. Trata-se de uma tecnologia capaz de identificar passagens de músicas proprietárias (desde que devidamente cadastradas num arquivo que o Google criou especificamente para realizar tal função), permitindo que o titular dos direitos autorais e conexos da obra utilizada escolha se (a) quer impedir a publicação do vídeo, (b) transferir para si o dinheiro da monetização daquele vídeo, possibilitando que o usuário o publicasse mesmo sem autorização prévia, ou (c) rastrear as estatísticas de visualização do vídeo. Ele foi apresentado pelos engenheiros do Google como a ferramenta que selaria a paz entre o YouTube e os tradicionais agentes da indústria fonográfica.

Parecia ser a solução perfeita mesmo! De um só golpe, o YouTube impediria os usos de material proprietário que pudessem constituir violações à lei de direitos autorais e ainda garantiria a continuidade daquilo que concede vigor à plataforma: ser uma plataforma cujos conteúdos são providos pelos próprios usuários (user-generated content). Este é um ponto para nos determos. A grande força do YouTube não reside tanto na gratuidade do acesso aos conteúdos, mas em que a empresa entendeu que a principal característica do consumo de bens culturais hoje em dia reside nas apropriações e criações alternativas de obras (ou até de pedaços de obras) que as pessoas podem fazer através de seus dispositivos midiáticos (computadores pessoais e até telefones celulares). Alguns pesquisadores rotulam esse fenômeno como “cultura de fãs” ou “cultura participativa”. Por mais que eu tenha críticas a algumas formulações desses pesquisadores, concordo com que qualquer produtor de bens culturais (músicas, filmes, livros etc.) tem de levar em conta as diversas apropriações que as pessoas fazem de suas produções.

Há vários tipos de apropriações. Há as mash-ups (sobreposição de duas canções conhecidas, formando uma terceira composição). Há a vaporwave music: estética que se apropria musicas conhecidas, alterando ou a tonalidade ou o andamento da gravação, criando uma outra percepção daquela música (sobre o tema, recomendo o artigo de Arnau Horta, disponível em: http://lab.cccb.org/es/vaporwave-el-hilo-musical-de-los-futuros-perdidos/). Recentemente, conheci a plunderphonia (agradeço aos colegas pesquisadores de Música & Comunicação Cássio Lucas (UFRS) e Marcelo Conter (Unisinos) por me apresentarem esse gênero experimental através de seu artigo científico acessível em: http://www.compos.org.br/data/arquivos_2017/trabalhos_arquivo_IJMN5OK6LW8O0AR9R54G_26_5622_21_02_2017_10_03_02.pdf ), que se trata da produção de versões de músicas conhecidas, manipulando apenas determinado pedaço da canção (uma frase, a tonalidade ou qualquer outra coisa). Um exemplo desse gênero é a enorme sequência de versões da canção All Star, do grupo americano Smash Mouth. Os fãs-produtores musicais resolveram fazer uma versão da música inteira tocada apenas em Dó Maior (https://www.youtube.com/watch?v=9CfIm89BIa8) ou apenas com a palavra ‘somebody’ (https://www.youtube.com/watch?v=rlYys58hsCU). Tais criações derivadas (se é que podemos utilizar a nomenclatura para esse tipo de apropriação) são a essência do YouTube e podem fazer com que a obra de um artista “viralize” de tal forma que se tornem um sucesso ainda maior do que poderiam alcançar no formato top hits do rádio e da televisão.

Desde a perspectiva dos produtores profissionais desses conteúdos, contudo, essa não é uma situação confortável: como lidar com tais apropriações? Elas são obras derivadas, conforme a lei determina, que exigem o cumprimento da lei de direitos autorais normalmente? Ou seria pura pirataria, que deveria ser sumariamente impedida? Mas, se for assim, a possibilidade que a obra e/ou o artista não se tornem (ou se mantenham) conhecidos torna-se bastante alta. Se você acha que as respostas para essas questões são difíceis, é simplesmente porque as fronteiras entre práticas de produção e consumo de bens culturais se tornaram fluidas, afetando também as próprias definições jurídicas.

É aqui que o Content ID surge como uma possibilidade de manter viva essa apropriação aleatória que as pessoas fazem das obras musicais e ainda gerar dinheiro para os titulares das obras originais. Em um tutorial oficial sobre o Content ID, a direção da empresa busca sublinhar essa característica democrática das apropriações (https://www.youtube.com/yt/copyright/pt-BR/). Deixo para você o julgamento sobre as razões que levaram a empresa a fazer um vídeo com bonecos do entretenimento infantil para explicar um assunto tão complexo e sério como direitos autorais: seria a maneira mais eficiente de sanar todas as dúvidas sobre o tema? Ou um indicativo de como a empresa estima a capacidade intelectual dos titulares de direitos autorais e de seus usuários?
Maldades a parte, meu ponto aqui é que, pese a aparência de resolução de problemas, o Content ID traz consigo uma série de perigos tanto para os produtores amadores quanto para a indústria da música. São recorrentes, por exemplo, os casos denunciados de abuso da lei de direitos autorais por parte de produtores amadores. Muitas vezes, vídeo amadores são retirados do ar porque há uma música proprietária sendo tocada durante a gravação, apesar da música nem sequer figurar como elemento central do vídeo. Os gamers são os que mais têm sofrido com esse lado autoritário do Content ID. Muitos desses comentadores de jogos eletrônicos têm seus vídeos suspensos, ou apresentados sem áudio (trilha sonora e vozes dos comentadores), por utilizarem músicas protegidas por direitos autorais. No entanto, contestam esses atores, as músicas de fundo não são um elemento fundamental para a visualização dos vídeos, podendo servir até mesmo como uma forma de publicidade para artistas e gravadoras.

O YouTube se defende sustentando que, se a empresa não pode permitir a violação da lei de direitos autorais, nada a impede a empresa de exercer uma política de direitos autorais própria que seja até mais rígida do que a legislação em vigor. Isso impede, de fato, que ela seja ainda mais processada. Além disso, há o dispositivo da disputa (dispute) através do qual os usuários podem contestar a decisão do algoritmo (lembre-se, é uma IA que toma suas próprias decisões!). Mesmo assim, como afirmam os gamers, o tempo em que seus vídeos ficam ou sem som ou indisponíveis pode causar relevantes perdas na viralização desses conteúdos, afetando decisivamente a monetização de seu material.

Para a indústria fonográfica, a situação é ainda mais delicada. Apesar da direção do YouTube afirmar que o dispositivo resolve cerca de 98% dos casos de violações, muitos titulares de direitos autorais se queixam de que ainda há muita permissividade no uso de suas obras. É claro que há, nessa reclamação, um lado subjetivo importante: “quanto” de controle seria suficiente? Mas minha preocupação é outra. Suponhamos que o Content ID conseguisse alcançar uma taxa entre 98% e 99,5%de monitoramento das violações à lei de direitos autorais. Se isso ocorresse, quem passaria a se tornar o grande responsável pela aplicação da lei seriam os próprios algoritmos do YouTube. E, com isso, boa parte da capacidade de pressão dos tradicionais agentes da indústria da música sobre a empresa digital se perderia. De alguma maneira, parece ser como convidar a raposa a tomar conta do galinheiro: a empresa conseguiria bloquear não tanto as violações à lei de direito autorais quanto, na verdade, a pressão que a indústria da música exerce sobre ela. Nesse caso, os riscos do negócio passariam totalmente para os titulares de direitos autorais, que dificilmente teriam como reclamar judicialmente da plataforma. Ou ainda, assim como ocorre com os gamers, ficariam à espera das decisões da empresa e, caso não se alcance um consenso, da Justiça para terem seus direitos respeitados.

É por isso que entendo o Content ID como sendo uma tecnologia tão instigante e intimidadora. Por um lado, é o mais avançado instrumento de monitoramento dos usos aleatório que os amadores fazem de obras proprietárias, permitindo que tais apropriações caóticas continuem se expandido. Nessa tecnologia há potencial para se resolver, em larga medida, o conflito entre liberdade de criação e remuneração de titulares de direitos autorais. Por outro, é uma ferramenta que pode conceder enorme poder à empresa digital, colocando em risco tanto a liberdade de criação artística quanto a remuneração justa para os criadores de obras originais.

Entendo ser fundamental que os agentes da indústria da música passem a debater com mais atenção o Content ID. Sem lugar à dúvida, essa é uma tecnologia relevante para o negócio de música gravada no século XXI, mas: como impedir que os algoritmos do YouTube sejam donos de si? Como atingir certa transparência nos dispositivos de monitoramento do ambiente digital?
Finalmente, o que mais me chama a atenção na querela da diferença de valor é a questão da remuneração dos titulares de direitos autorais e conexos. Esse é um tema mais complexo do que parece, porque aponta para outro tipo de economia da música no século XXI. Na próxima coluna, vou apresentar uma visão panorâmica sobre o assunto.

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