Quanto vale a música?

A resposta a esta pergunta para mim é uma contra pergunta: quanto vale o fã? Este sim deve ser o centro reflexivo da indústria musical atual, e é ela que deve ser respondida cada vez que um projeto musical passa a virar objeto de comercialização.

Numa tentativa de classificar, para melhor entender, eu diria que existiram na era clássica do disco várias razões sociais para o valor mercantil da música. Tentarei expor alguns deles aqui:

1. Valor de acesso ao conteúdo, tem valor por permitir a escuta da obra a qualquer momento; A necessidade de posse vem pela facilidade de se poder ouvir a música quando se quer. Este valor é totalmente suprido pelo streaming no mundo moderno.

2. Valor de coleção, ou memorabilia, que garante um status social através da posse de discos que denotam uma personalidade de cada indivíduo. As pessoas frequentemente exibem os discos em locais de convivência social (sala para os adultos, quarto para os adolescentes). Exibir os bens culturais dos quais nos orgulhamos e adquirimos é uma forma de se posicionar socialmente.

3. Valor de presente (gift), possibilitando a demonstração de afeto a outro, com forte conotação simbólica, a partir do objeto disco. Já que cada obra é única e carrega em si uma mensagem, um forte valor cultural se torna um objeto de grande valor para demonstrar afeto e conhecimento da pessoa que o recebe. Em um natal, por exemplo, com o mesmo objeto (disco) se pode presentear a avó (ex: Roberto Carlos), o avô (ex: Caetano Veloso), as tias (ex: Wesley Safadão), os primos (ex: Luan Santana) e os sobrinhos (ex: Xuxa Só Para Baixinhos), mantendo apesar da repetição do objeto, grande variedade e personificação no presente, por conta caráter simbólico único de cada um deles.

Olhando estes três valores complementares temos pistas de porque a música gravada na era do disco representou uma indústria tão rica. O conjunto deles me parece suprir necessidades sociais e culturais do ser humano. Nestes exemplos acima enriquecimento cultural autônomo/individualizado, status social e relacionamento social.

A partir disso percebemos que o valor comercial gerado para a música tem sempre como âncora uma necessidade (natural ou inventada) social. Ou seja, o valor da música, sempre foi em relação ao fã e suas necessidades, a partir do ser humano, e não da indústria musical.

O disco físico durou um século como mídia dominante na circulação musical e em torno dele uma indústria global e poderosa se formou. Talvez esta estabilidade da indústria tenha dificultado neste momento de turbulência a compreensão do essencial no valor comercial da música: o valor do fã.

De um ponto de vista puramente econômico cada fã carrega em si uma quantidade disponível a ser gasta em objetos/serviços que carregam valores sociais que lhe convém. Os valores sociais que uma obra representa para ele, assim como os formatos de acesso a ela, é o que vai gerar nele uma valoração financeira para a obra.

No exemplo com os valores clássicos que mostrei anteriormente, o formato disco sozinho soube saciar todos os três valores sociais, ganhando grande relevância na vida das pessoas mais variadas. Com uma precificação adequada, se valendo de uma certa dose de protecionismo, uma indústria mundial surgiu, abrangente, altamente lucrativa e principalmente relevante.

A pergunta que se faz hoje, de quando vale a música, é geralmente pensada a partir da perda do valor deste objeto que era o disco. Ora, esta pergunta contém em si um abismo que impede sua resposta: o objeto gravado nunca teve valor, mas sim o que ele representava em termos de mediação social.

O mundo mudou desde o surgimento da música gravada e reproduzida em larga escala, disso ninguém tem dúvida, mas muitas vezes ainda se quer enxergar a relação social/comercial do fã com a obra sob as mesmas três relações sociais que ele supria no século passado.

Minha proposta é que comecemos a reflexão não analisando os valores comerciais que a música gravada já teve, mas sim os valores sociais que a levaram a adquirir o seu valor de mercadoria. O que precisamos entender, antes de tudo, é o que representa a música para seus consumidores hoje. Antes de discutirmos quanto vale a música precisamos rever os valores sociais que envolvem o consumo de música hoje em dia. E tenho certeza de que muita coisa mudou.

Em uma sociedade que está reinventando toda a sua interação social, construindo novas formas de interação e consumo, se movendo em rede e de forma espontânea e desordenada, me parece fundamental repensar o papel da música nos valores sociais das pessoas.

A pergunta quanto vale a música se transforma neste instante em quanto vale o fã, saindo da alçada de uma economia puramente pensada na mercantilização e indo para uma economia calcada em uma reflexão social.

Abaixo, despretensiosamente, durante um vôo, tento esboçar alguns valores sociais dos fãs de música que podem representar valores econômicos na era do streaming.

  • Valor motivacional (moods). Existe hoje um uso recorrente e individual da música não como obra de arte de comunicação explícita, mas sim de incentivadora de estado de espírito: saudoso, raivoso, pacífico, reflexo etc. É a música não como consumo de obra simbólica, mas de obra motivacional do cotidiano. As playlists de moods, grandes sucessos nas plataformas de streaming, são prova disso.
  • Valor de interação social (chat). Compartilhar, assim como comentar obras virou, na era da conectividade social omnipresente, uma forma de se manter ativo em suas conexões sociais como amigos, colegas, família e grupos heterogêneos. É um valor que já existia no passado, mas talvez a meu ver não com tanta intensidade como hoje, o que pode lhe aferir um nova possibilidade de comercialização. A corrida pelo compartilhamento social (no Facebook, Twitter, Instagram) dos lançamentos, por exemplo, é uma prova de quanto se busca esta interação social a través da música.
  • Valor trendsetter. Usar a música para se provar uma pessoa “trendy”, influenciador de seu entorno social. Existe uma competição para se criar playlists muito seguidas ou compartilhar antes de todos um novo artista. A hiper conectividade deu um outro valor a essa atividade de diferenciação.
  • Valor pertencimento. Ser parte de um grupo de pessoas que conhece, segue e ama um certo artista. Talvez um dos valores mais clássicos da música comercializada, mas também potencializado pela alta conectividade de nichos na era da internet. O crowdfunding é de certa forma uma evolução desta necessidade, se ser mais que fã, mas apoiador desde o início de uma obra.

Estes esparros valores sociais que exponho não me parecem ter ainda um modelo único que possa lhes conceder um valor econômico aceito pelos fãs de música. Tampouco sei se são efetivamente exploráveis comercialmente. São valores já presentes no consumo musical atualmente, permitidos por uma revolução tecnológica que não foi pensada e nem proposta pela indústria musical. São apenas pistas para reflexão que nos levam a tentar pensar modelos de exploração comercial distintos dos do disco, baseadas na função social da música.

O futuro da indústria musical me parece brilhante, por se tratar de a música ser uma das mais poderosas mediações sociais do ser humano. Mas certamente será mais promissor quanto mais for pensado a partir da sociedade em que vivemos e não a partir do modelo econômico que herdamos. A sociedade determina o valor dado à produção cultural, não existe forma de inverter esta relação.

Modelos econômicos novos já coexistem na nova economia da música. O streaming financiado por publicidade, o streaming financiado por assinatura, o crowdfunding, as sessões de transmissão ao vivo e a remuneração por UGC (conteúdo gerado pelo usuário) são exemplos disso.

O novo caminho da indústria parece estar começando a se desenhar. Saber entendê-lo e ousar experimentar e criar modelos novos, sem medo do fracasso e sem se prender a fórmulas do passado, será, assim como sempre foi nas indústrias criativas, a melhor forma de se buscar o sucesso. Quando se trabalha com valor simbólico fórmulas são sempre uma ilusão, a única certeza é de que tudo não passa de uma aventura. E no meu entender o prazer em vivê-la é a busca pela inovação constante.

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