Estamos em 1998. Inaugura-se, nos EUA, com o DMCA, uma nova forma de regulamentar a responsabilidade civil dos provedores de internet por meio da criação do chamado safe harbour, ou porto seguro, que os exime de qualquer responsabilidade quando suas redes e sistemas são utilizados por terceiros para violar direito autoral.

A idéia é boa, e muitos concluiríamos, no futuro, que esse mecanismo se tornaria uma das grandes contribuições regulatórias que permitiram o florescimento da internet, uma vez que obrigar o então nascente segmento de mercado de provisão de serviços de internet a empreender enormes esforços para se defender incessantemente de ações judiciais fundadas na regra tradicional de responsabilidade civil teria sido decretar-lhe a ruína, ou, no mínimo, teria impedido o surgimento da Web 2.0, aquela em que o usuário passa a ser um gerador de conteúdos na rede.

Entretanto, segundo esse quadro regulatório, para que os provedores de serviços de internet pudessem ser protegidos, deveriam, após ciência da violação cometida por meio de seus serviços, indisponibilizar o conteúdo infrator, sob pena de se lhe aplicar a regra tradicional de responsabilização, que evidentemente significaria uma incursão do titular de direitos pelos meandros do sistema judicial, alternativa aparentemente mais custosa para ambos.

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No campo tecnológico, a quantidade de informação circulando na rede cresceu exponencialmente. Segundo a Cisco, o tráfego mensal da internet global que, em 1998, era de 11.2 milhões de gigabytes, chegou a 1 bilhão de gigabytes por mês em 2016, tendo crescido cerca de 90 vezes desde então.

Em termos de velocidade, a tecnologia DSL era, há 20 anos, uma novidade comercial, e, nos EUA de então, um pacote com velocidade de 384 Kbps era comercializado por cerca de 40 dólares mensais, enquanto a velocidade média global de conexão banda larga em 2016 foi de 27.5 Mbps, cerca de 70 vezes maior, a preços, em média, bastante menores do que os de 1998. É a diferença entre levar 1 hora ou 3 dias para baixar um filme.

No campo econômico, a internet comercial já não é o recém-nascido que demanda cuidados especiais para chegar à maturidade. É, ao contrário, um muito bem nutrido, educado, e próspero adulto, com um indefectível sistema imunológico e excelentes advogados. O ouro, que havia virado petróleo, e depois propriedade intelectual, agora se transformou em dados – realidade criada justamente pelo desenvolvimento da rede.

Muitas empresas de provimento de serviços de internet saíram da posição de simples curiosidades empresariais, movimentos hype, ou novidades aprazíveis, para a posição de mega-conglomerados empresariais presentes em cada segundo da vida de bilhões de terráqueos.

E como evoluiu o campo jurídico? O DMCA e o safe harbour seguem sendo o padrão jurídico de facto em todo o mundo, com algumas poucas exceções, e, no Brasil, apesar de não se encontrarem legislados, foram adotados de maneira parcial pelo STJ em um conjunto de decisões e que analisam a questão sob a perspectiva da teoria do risco.

É de se perguntar, evidentemente, se essa nova realidade empresarial é compatível com a existência daquele indulgente e acolhedor oásis da irresponsabilidade civil que, passados 20 anos desde sua criação, talvez já não faça mais sentido. Mais ainda, é preciso entender se aqueles que suportaram os maiores ônus trazidos pela criação do safe harbour, os titulares de direito, têm capacidade de os seguir suportando, e se essa distribuição de ônus e bônus é justa nos dias atuais.

Não deveria o provedor garantir, por exemplo, que fosse impossível, ou ao menos muito difícil, voltar a disponibilizar um conteúdo já previamente retirado do ar no mesmo serviço, lidando-se pontualmente com questões de fair use ou limites aos direitos autorais?

Em plagas latino-americanas, a tendência parece ser exatamente contrária. Comprova-o o Projeto de Lei Piñedo, na Argentina, que está para ser analisado em caráter definitivo no próximo 13 de dezembro, e que não só mantém o safe harbour como imaginado há 20 anos, mas ainda aumenta as benesses aos provedores, eliminando completamente a obrigação do provedor de indisponibilizar o conteúdo infrator e forçando o titular de direitos a ingressar em juízo a cada violação constatada.

Se o modelo do DMCA já se havia convertido em um arranjo bastante desfavorável para os interesses do setor de conteúdo em razão da radical mudança observada nas dinâmicas tecnológicas e econômicas que cercam a internet, um sistema como o proposto na Argentina derrota completamente qualquer pretensão de equilíbrio e agrava ainda mais o prejuízo para o setor de criação de conteúdo. Transforma o porto seguro em um privilégio.

Aliás, quando se analisa o estado das coisas, verifica-se que, com ou sem lei, essa transmutação do porto seguro já havia acontecido, já que, longe de ser apenas uma medida de proteção do negócio dos provedores, o safe harbour se tornou um verdadeiro modelo de negócio em si, inclusive muito bem monetizado, numa era em que sobe-se um filme de 10 GB em algumas horas e leva-se dias para retira-lo do ar, enquanto a audiência gera ingressos de publicidade.

Perguntaria, talvez, a Clément-Bayard, o célebre francês que inaugurou a jurisprudência de abuso de direito na França, se o safe harbour pode ser usado dessa maneira. Creio que ele, antes de desaparecer agarrado a uns de seus balões, perguntaria se há, nesse porto, docas especiais para navios piratas.

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