Certos temas jurídicos são como personagens vagando à procura de um bom autor, como diz um querido professor e amigo. A relação entre a arte de rua e o direito autoral é um desses temas a clamar por uma boa análise. Faço, nesta coluna, algumas provocações jurídicas, prometendo algum dia um estudo mais profundo.

O trabalho de zeladoria urbana de João Dória, empossado há menos de 45 dias em São Paulo, incluiu a limpeza de muros e fachadas pichadas cidade afora, inclusive a de muitos murais outrora grafitados com autorização do antecessor, Fernando Haddad.

Surgiu, inevitável, uma discussão que nem todos os tratados de estética poderão resolver. Qual a diferença entre pichação e grafite? E, não havendo uma diferença cartesiana entre os dois, poderia alguém decidir sobre vida ou morte deste ou daquele?

Critério estético na proteção autoral

Uma primeira questão, velha, mas irresoluta na doutrina, é a dos critérios para que uma criação seja protegida como obra autoral. Um mural dos Gêmeos é, sem dúvida, uma obra, de acordo com a fórmula da lei de direitos autorais [criação do espírito (originalidade+criação humana) + fixação em suporte de qualquer espécie]. Mas a frase “Não reclame, São Paulo não é Miami”, pichada no Largo da Batata, é obra? Parece-nos que não. Mas e se o pichador fosse um ressuscitado Fernando Pessoa, e o texto fosse da estatura de um Tabacaria? E se as letras fossem estilizadas de um modo original? Talvez a questão estética (Marcel Duchamp que me perdoe), atirada da janela pelos autoralistas, não seja assim tão irrelevante. Outras leis, mundo afora, como uma estadounidense, VARA, de 1990, recepcionam a questão estética como algo importante.

O Visual Artist’s Rights Act (VARA) requer, como critério prévio, que o trabalho seja de “Recognized Stature”, deixando essa interpretação a cargo dos julgadores. Ter juízes como críticos de arte dá calafrios aos artistas, mas essa prerrogativa tem sido bem utilizada, recorrendo-se a especialistas (o que, por sua vez, dá calafrios aos advogados).  O precedente mais importante é o caso Carter v. Helmsley-Spear, que estabelece um padrão de teste estético para avaliar a “Recognized Stature”.

Consequências da proteção na arte urbana

Por que se preocupar se há ou não proteção pelo direito autoral? Esta é justamente a segunda questão. Se a criação é protegida como obra, o direito moral do autor de assegurar sua integridade, opondo-se a modificações, fica completamente prejudicado quando o prefeito decide pintar tudo de cinza. Ou será que, ao grafitar um mural com autorização da prefeitura, não há, por parte do autor, qualquer pretensão de perenidade, já que a arte de rua nasce sabendo-se efêmera? Se for assim, seria esse um caso ilegal de renúncia a um direito moral, já que esses direitos seriam irrenunciáveis pela lei brasileira? No lado do direito patrimonial de autor, são ainda outras as questões. Posso usar um grafite como estampa da minha próxima coleção de moda, ou como fundo de um ensaio fotográfico?

Conflito entre proprietário tradicional e proprietário intelectual

Um terceiro ponto a explorar é a relação entre a propriedade do suporte físico – aqui os muros e fachadas da cidade – e o destino da obra que se lhe sobrepõe. Em eventual disputa, qual direito deve prevalecer, o do dono do prédio pintado ou o do artista que o pintou? Vejo aproximação entre essa discussão e a não rara disputa entre arquitetos e donos de propriedades que, posteriormente, querem reformá-las. Prevalece o direito do autor que fixa a obra sobre um determinado suporte ou a do dono desse suporte? No caso da obra arquitetônica, decisões brasileiras apontam prevalência do dono do imóvel, garantido ao arquiteto o direito de repúdio. No caso do grafite, não conheço julgados nacionais.

A arte no conjunto de recursos urbanos

Outro problema, com algum potencial jurídico, é a prerrogativa do governante de determinar uma orientação estética para a cidade. Este colunista não consegue deitar os olhos por muito tempo sobre a estátua do Borba Gato, opressiva por sobre a Santo Amaro. Acha-a deplorável, e de todo recomendável que ela seja descartada do panorama urbano paulistano. Mas há quem a adore, e veja nela, quando não um valor estético, um valor histórico. Em que medida a arte urbana passa a integrar os recursos da cidade e fazer parte do direito à cidade? Em que medida a aposição de arte urbana a determinados espaços não arruina, igualmente, os recursos da cidade para quem não a aprecia? Tema filosófico, a indicar a complexidade da questão.

5Pointz e outros precedentes nos EUA

O caso que mais se aproxima da discussão do caso paulistano é o caso 5Pointz (COHEN v. G & M REALTY LP).

No Queens, em NYC, as paredes de uma fábrica serviram, por anos, como painel para grafiteiros de todo o mundo. Acabou se convertendo em ponto de visitação turística. Um dia, os proprietários decidiram construir um conjunto habitacional, o que envolvia, claro, a derrubada de todos os muros. Com os muros iriam-se os grafites, but not without a fight. Os artistas entraram com ação na U.S. District Court for the Eastern District of New York, mas não conseguiram liminar para impedir a destruição e 5Pointz. O caso ainda não foi julgado em definitivo, e ainda pode resultar em perdas e danos em favor dos grafiteiros. Vale a pena a leitura do caso.

Por fim, como referência de como os tribunais lidam com o tema nos EUA, recomendaria a análise de casos que discutem a utilização dos grafites, para fins comerciais, sem autorização do grafiteiro. Há uma descrição e referências para leitura dos dockets nesta página.

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